Há mais de três anos, o Parlamento Europeu aprovou a normativa que estabelece o ‘direito à reparação’, obrigando os fabricantes a fornecer manuais, ferramentas e componentes para que os usuários possam reparar seus dispositivos.
Apesar da legislação, muitas empresas, como a fabricante das lavadoras de roupas Beko, recusam-se a fornecer o firmware necessário para a reparação, alegando que não se trata de um equipamento informático, mas sim de um eletrodoméstico.
Então tá… se a lavadora de roupas em questão contar com um firmware ou sistema operacional hackeável, ele passa a ser um equipamento informático? Foi essa pergunta que motivou a história deste artigo.
Do hackeamento ao direito de reparação
O usuário do X (Twitter) ChuxMan Skynetwalker teve que lidar com um problema na sua lavadora de roupas, e tentou obter o firmware do fabricante para resolver a questão por conta própria. Obviamente sem sucesso.
Diante da negativa, ele iniciou um processo de hackeamento para extrair o firmware de uma lavadora idêntica, pois ChuxMan não se conformava com a limitação imposta pelo fabricante para resolver um problema por conta própria, tal e como faria com um smartphone ou um computador.
“Que uma empresa estúpida não lhe dá o firmware de uma máquina de lavar roupa, apesar da decisão europeia sobre o direito à reparação? Bem, vou hackear uma máquina de lavar do mesmo modelo e vou extrair a alma dela via ICSP.”
O fabricante sugeriu a compra de uma placa inteira, que custa quase o preço de uma lavadora de roupas nova. Algo que é tão comum, que pode ser muito bem encarado como uma espécie de “obsolescência programada”.
Afinal de contas, quem sai ganhando é o próprio fabricante, que lucra em cima da venda de uma peça nova. Mas ChuxMan conta com conhecimentos eletrônicos, afirmando que o problema era de software e não de hardware. Sem falar que a compra de uma nova placa implica em um eventual descarte de objetos poluentes, algo que ele reprovava.
Com a recusa do fabricante, ChuxMan utilizou um programador TL866 e o software AVRDUDE para extrair o MCU da máquina danificada, garantindo a possibilidade de reparo adequado.
“Primeiro preparei as ferramentas com a placa danificada: as “ferramentas” consistiam em um Arduino programado como ICSP e um software de extração chamado AVRDUDE, mas não funcionou. Então lembrei que o programador TL866 também tem ICSP e com esse consegui me conectar ao chip danificado! Um chip que vinha recebendo 20V sobreviveu estoicamente, pelo menos para conseguir extrair o firmware.
Ainda não tenho a garantia de que o software não está corrompido, mas tem alguns dados claros, então pelo menos me garante que a extração está correta, agora posso tirar o da minha mãe e verificar. Agora posso consertar a coisa toda, e no caso de o MCU ser quebrado, eu já posso substituí-lo, apesar de Beko.”
A resposta da Beko sobre o assunto
Uma das partes mais divertidas de tudo isso é a resposta da Beko, que alegou não ser obrigada a fornecer o firmware, citando o regulamento europeu que não inclui software e firmware como peças de reposição obrigatórias para os usuários finais.
“Da Beko, estamos cientes da situação gerada e lamentamos o ocorrido com o usuário afetado. Atribuímos grande importância ao atendimento ao cliente, e é por isso que trabalhamos todos os dias para melhorar os processos nesta área crucial para oferecer aos nossos clientes o valor agregado que eles merecem. Neste caso específico, a Beko forneceu ao usuário todas as possibilidades para resolver a situação dentro do marco legal aplicável. A este respeito, em relação à obrigação de entregar o firmware aos utilizadores finais, deve esclarecer-se que o artigo 8.º, n.º 1, alínea b), do anexo II do Regulamento Europeu de Conceção Ecológica para Máquinas de Lavar e Lavar Secadora 2019/2023, ao regular a disponibilidade de peças sobressalentes, enumera as peças sobressalentes que os fabricantes devem disponibilizar aos utilizadores finais. Entre as peças de reposição listadas no artigo supracitado, não está estabelecida a obrigação do fabricante de disponibilizar o software e firmware ao usuário final, uma vez que esse tipo de intervenção é estabelecido para ser realizado por reparadores oficiais autorizados. Não obstante o acima exposto, gostaríamos de reiterar que a Beko está totalmente disponível para o usuário afetado e outros usuários para tentar tornar sua experiência com nossos produtos o mais satisfatória possível, e para ajudá-los e aconselhá-los sobre qualquer problema que possam ter”.
ChuxMan contestou as informações, considerando as declarações da Beko como “besteiras” e apontando para a normativa europeia que, segundo ele, obriga os fabricantes a fornecerem o firmware não apenas a serviços oficiais, mas também a independentes e particulares.
“Diz que [o fabricante] deve dar não só serviços oficiais de reparação, mas também independentes e até particulares exatamente o que estou pedindo.”
Sem contar que o texto vinculado por Beko é de 2019, ANTES da resolução europeia“.
Resumo de toda essa novela: ChuxMan está com a razão. Ele está protegido pelo direito de reparação, e o fato de hackear a máquina de lavar basicamente confirma que o produto é sim um equipamento informático.
E ficou bem feio para a Beko no final das contas, pois distorceu a narrativa (aka MENTIU) para se defender (ou melhor, evitar ceder a firmware da máquina para que o usuário pudesse realizar o reparo adequado).