Eu sei que o ódio é um sentimento deplorável. Ninguém deveria odiar ninguém, mesmo que isso custe a dignidade de sua esposa com uma doença autoimune. Mas o Oscar 2022 deixou bem claro que existe uma rivalidade ainda maior que Will Smith e Chris Rock: a Academia de Hollywood contra a Netflix.
Esse ódio resultou em um marco histórico: pela primeira vez na história, um filme que é de uma plataforma de streaming venceu o Oscar de Melhor Filme… e não foi um filme da Netflix. “No Ritmo do Coração” (CODA), da Apple TV+ (no Brasil, o filme está disponível no Amazon Prime Video) recebeu o prêmio principal da noite, deixando Ataque dos Cães, que recebeu 12 indicações, “apenas” com o prêmio de Melhor Diretor para Jamie Campion.
Então… por que a Academia de Hollywood tem tanto ódio contra a Netflix?
Porque a Netflix mudou as regras do jogo?
Muito provavelmente sim.
É fundamental colocar tudo em contexto nessa vida, e esse cenário de rejeição à Netflix também está dentro de um cenário bem específico.
A própria Netflix se vendeu como uma solução para um problema criado pelas redes de cinema: uma experiência com relação custo-benefício empobrecida. Dinheiro não dá em árvore, e ninguém gosta de pagar R$ 38 pelo combo de pipoca + refrigerante + chocolate. Sem falar nos valores dos ingressos, que alcançam preços exorbitantes.
A experiência do cinema se tornou cara demais e não entrega tudo o que promete. Sair de casa pagando o deslocamento por ônibus ou carro (e com o combustível no preço que está), pagar o estacionamento no shopping, comprar o ingresso e a comida na bomboniére pode chegar a custar mais de R$ 100 para duas pessoas. Para uma pessoa, passa dos R$ 50 com facilidade.
Então, por mais cara que a Netflix esteja custando hoje (R$ 55,90 no plano mais caro), uma mensalidade da plataforma de streaming oferece um pacote de séries e filmes que justificam a troca. E é óbvio que a indústria do cinema não gostou disso.
A melhor forma para os estúdios recuperar os investimentos feitos nos filmes é mesmo na bilheteria dos cinemas. E as redes de cinema precisam sobreviver com o público que compra pipoca e refrigerante com preços absurdos. E as plataformas de streaming e, principalmente, a Netflix, atrapalham este processo.
Logo, o ódio contra a Netflix se explica pela sua existência, e o que ela sempre representou para quem acredita que o cinema tradicional só pode funcionar através do sistema tradicional. Por uma simples questão de sobrevivência, e não exatamente de conceito ou filosofia.
A Netflix vai ganhar o Oscar de Melhor Filme em algum momento no futuro?
É difícil dizer qualquer coisa neste momento. Seja porque estamos todos no calor da emoção do Oscar 2022, seja porque não podemos prever o futuro. Mas a impressão que fica é que isso nunca vai acontecer.
O mesmo acontece no Festival de Cannes, que é mais radical que o Academy Awards e baniu as produções da Netflix por entender que os seus filmes não são cinema, e sim, filmes feitos para a televisão. E entendo que a vitória de “No Ritmo do Coração” como Melhor Filme do Oscar 2022 acaba de vez com essa discussão estúpida sobre o que é ou não cinema de verdade.
Para mim, cinema é o formato do produto de entretenimento, e não onde ele é exibido. Caso contrário, toda uma indústria é hipócrita, pois não deixou de considerar como cinema o “home cinema” praticado ao longo dos últimos 60 anos (pelo menos), com a comercialização de filmes em VHS, DVD ou Blu-ray.
O grande problema aqui é que plataformas de streaming como a Netflix não dividem os lucros com toda uma indústria que, ao longo da história, sempre capitalizaram mais com todas as mecânicas historicamente estabelecidas. Hoje, as plataformas de streaming ganham a fatia maior praticamente sozinha, mudando as regras do jogo.
O mesmo aconteceu antes com a indústria da música, e nem por isso o Grammy deixou de premiar artistas que decidiram lançar singles e álbuns completos por plataformas digitais. No final, todos acabaram se adaptando às novas tecnologias, e os artistas passaram a ganhar dinheiro com mais shows.
No final das contas, o cinema vai precisar se reinventar para sobreviver. O próprio Oscar precisa de uma reinvenção para se manter relevante. Caso contrário, será o evento que só os velhos brancos pedantes que entendem que são os únicos que sabem o que é melhor para todo mundo que vão prestigiar a premiação que “ninguém se importa”.
E não queremos isso. Afinal de contas, onde vamos ver barracos e momentos constrangedores ao vivo? No MTV Movie & TV Awards?