Toda controvérsia para a Microsoft envolvendo o Xbox é pouca.
A empresa anunciou uma série de demissões em massa e o fechamento de estúdios inteiros ligados à sua divisão de jogos, afetando milhares de profissionais ao redor do mundo. Estima-se que mais de 9.000 funcionários tenham sido desligados até agora, com impacto direto em equipes criativas, técnicas e administrativas da Xbox Game Studios, ZeniMax e outras subsidiárias adquiridas nos últimos anos.
As demissões fazem parte de um processo de reestruturação interna que visa redirecionar investimentos, principalmente para o setor de inteligência artificial — área que, segundo declarações da própria Microsoft, receberá cerca de US$ 80 bilhões em infraestrutura em 2024.
No meio do furacão, o Matt Turnbull, gerente técnico da Xbox Game Studios Publishing, achou que seria uma espetacular ideia publicar no LinkedIn uma mensagem voltada aos colegas afetados pelas demissões.
E até seria, se ele não apelasse para o absurdo na hora de tentar fazer com que os demitidos se sentissem um pouco melhor.
Microsoft soa irônica e debochada neste caso
Em seu post, que mais tarde foi apagado, Turnbull sugeria o uso de ferramentas de inteligência artificial generativa — como o ChatGPT e o Microsoft Copilot — como forma de aliviar a carga emocional e cognitiva associada à perda de um emprego.
O executivo apresentou sugestões práticas de prompts que poderiam ser usados nessas plataformas para simular sessões de coaching de carreira, otimizar currículos, criar mensagens de networking, lidar com a síndrome do impostor e até reestruturar perfis no LinkedIn.
Turnbull argumentou que não compartilhar tais sugestões seria negligente, dada a situação crítica enfrentada por tantos colegas. Ele enfatizou que essas ferramentas não substituem a vivência pessoal nem a voz de cada indivíduo, mas que poderiam ajudar a desbloquear a mente em momentos de estresse e incerteza.
Os prompts incluíam instruções para gerar planos de ação de 30 dias após a demissão, buscar redirecionamento de carreira dentro da indústria de games e preparar abordagens de contato com estúdios e recrutadores.
Também havia sugestões voltadas à reconstrução da autoestima e à superação da insegurança profissional.
Aqui está o texto completo, caso você precise:
Estes são tempos realmente desafiadores, e se você está navegando em uma demissão ou mesmo se preparando silenciosamente para uma, você não está sozinho e não precisa fazer isso sozinho.
Eu sei que esses tipos de ferramentas geram sentimentos fortes nas pessoas, mas eu seria negligente em não tentar oferecer o melhor conselho que posso nessas circunstâncias. Tenho experimentado maneiras de usar ferramentas LLM Al (como ChatGPT ou Copilot) para ajudar a reduzir a carga emocional e cognitiva que vem com a perda do emprego.
Aqui estão algumas ideias rápidas e casos de uso que podem ajudar se você estiver se sentindo sobrecarregado:
Sugestões de planejamento de carreira:
“Atue como um coach de carreira. Fui demitido de um [papel] na indústria de jogos. Ajude-me a construir um plano de 30 dias para me reagrupar, pesquisar novas funções e começar a me candidatar sem me esgotar.”
“Que tipos de empregos na indústria de jogos eu poderia escolher com experiência em [Produção/Narrativa/LiveOps/etc.]?”Currículo e Ajuda
do Linkedin”Aqui está meu currículo atual. Dê-me três versões personalizadas: uma para AAA, uma para funções de plataforma/publicação e outra para liderança de startups/pequenos estúdios.”
“Reescreva este marcador de currículo para destacar o impacto e as métricas.”
“Esboce uma nova seção ‘Sobre mim’ do LinkedIn que se concentre no meu estilo de liderança, títulos enviados e visão para o desenvolvimento de jogos.”Networking e divulgação
“Elabore uma mensagem amigável que eu possa enviar aos antigos colegas de trabalho, informando-os de que estou explorando novas oportunidades.”
“Escreva uma mensagem de introdução calorosa para entrar em contato com alguém em [nome do estúdio] sobre um anúncio de emprego.”Clareza Emocional & Confiança
“Estou lutando contra a síndrome do impostor depois de ser demitido. Você pode me ajudar a reformular essa experiência de uma forma que me lembre no que sou bom?”Nenhuma ferramenta de IA substitui sua voz ou sua experiência vivida. Mas em um momento em que a energia mental é escassa, essas ferramentas podem ajudá-lo a se libertar mais rápido, mais calmo e com mais clareza.
Se isso ajudar, sinta-se à vontade para compartilhar com outras pessoas em sua rede.
Seja gentil, fique esperto, fique conectado.
É claro que ninguém gostou dessa sugestão
A publicação foi fortemente rejeitada por grande parte da comunidade. Para desenvolvedores e criadores da indústria de jogos — que já encaram a inteligência artificial como uma ameaça real a seus empregos —, a sugestão soou insensível e até cínica.
Muitos viram no gesto de Turnbull um reflexo da desconexão entre as lideranças corporativas e os trabalhadores que sofrem os impactos diretos das decisões estratégicas. A ideia de usar um chatbot como substituto para suporte humano, especialmente após uma dispensa traumática, provocou indignação e revolta, ainda mais em um contexto onde a própria IA é apontada como causa das reestruturações.
Turnbull foi automaticamente eleito “o rei da contradição”: os funcionários foram demitidos para aumentar os investimentos em inteligência artificial, e ele recomenda que um chatbot console os funcionários dispensados.
Eis um exemplo de um ser que tem uma mentalidade tecnocrática, que prioriza eficiência e redução de custos em detrimento do bem-estar humano.
Uma IA pode te consolar?
Enquanto isso, muitos especialistas afirmam que ainda não há um substituto viável para o acolhimento o diálogo humano e o apoio emocional genuíno em momentos de crise. Uma IA ainda não é sinestésica ou empática a tal ponto.
Aliás, fica a pergunta: até que ponto a tecnologia pode — ou deve — ocupar espaços tradicionalmente humanos?
A tentativa de aplicar soluções automatizadas a problemas que envolvem empatia, dignidade e respeito escancara um risco que vai além da indústria de jogos. Estamos diante da perigosa tendência nas empresas tech em tratar a inteligência artificial como uma panaceia, ignorando que algumas experiências, como o luto profissional e a reconstrução emocional após uma demissão, exigem mais do que algoritmos e sugestões automatizadas.
É preciso (com uma certa urgência) reavaliar o papel da inteligência artificial no ambiente de trabalho, e sempre medindo o seu impacto direto na vida das pessoas. Líderes e gestores precisam se comunicar de forma eficiente com os seus funcionários, em tempos de crise, com responsabilidade, empatia e consciência do momento vivido pelos profissionais afetados por uma demissão em massa.
Via Aftermath