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Por que Donald Trump NÃO vai “salvar Hollywood” com um tarifaço

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É complicado.

“Um Filme Minecraft” se aproxima da barreira psicológica dos US$ 1 bilhão de bilheteria global, “Sinners” bateu recordes com 236 milhões arrecadados, “Thunderbolts*” estreou com 162 milhões ao redor do mundo…

Enquanto isso, a produção cinematográfica nos Estados Unidos enfrenta uma realidade dramática.

Mesmo com um aumento de 15,8% na receita de bilheteria em comparação a 2024, a indústria de cinema dos Estados Unidos amarga uma queda drástica de 40% nas filmagens de longas-metragens e séries. E isso é um reflexo direto das greves de atores e roteiristas ocorridas em 2023.

E qual é a solução de Donald Trump para reverter o cenário?

A única coisa que ele sabe fazer: impostos contra as produções realizadas fora dos Estados Unidos.

Vamos explicar didaticamente por que essa ideia é estúpida.

 

A solução controversa de Donald Trump

O presidente Donald Trump apresentou uma proposta polêmica (para não dizer imbecil) para reverter a situação. Em vez de criar incentivos fiscais ou oferecer subsídios para produtores locais, Trump anunciou em sua rede social Truth Social a intenção de estabelecer uma tarifa de 100% sobre qualquer produção cinematográfica realizada fora dos Estados Unidos.

Em sua declaração, Trump caracterizou a situação como “uma ameaça à segurança nacional” (sic), alegando que outros países estão coordenando esforços para atrair produtoras e estúdios para fora do território americano.

“QUEREMOS FILMES FEITOS NA AMÉRICA, DE NOVO!”, enfatizou Trump, enquanto autorizava o Departamento de Comércio e o Representante de Comércio dos EUA a iniciarem o processo para implementação da tarifa.

 

Lacunas e inconsistências na proposta

É claro que a proposta gerou reação imediata no setor.

Trump não entra em detalhes sobre a implementação da medida. Por exemplo, não fala como seriam tratados os filmes norte-americanos rodados no exterior por necessidades criativas, já que as histórias são ambientadas em cenários internacionais.

Porque, pra Trump, só interessa os impostos.

Especialistas como William Reinsch, ex-alto funcionário do Departamento de Comércio dos EUA, alertaram que as consequências poderiam ser “potencialmente devastadoras” para a indústria cinematográfica norte-americana, prevendo retaliações internacionais que prejudicariam ainda mais Hollywood. “Temos muito mais a perder do que a ganhar”, afirmou Reinsch em recente entrevista à Reuters.

A revista Variety coletou diversas opiniões de profissionais do setor, muitos optando pelo anonimato, que reforçam a previsão dos especialistas sobre as consequências devastadoras caso as tarifas sejam aplicadas.

Um produtor londrino questionou a falta de planejamento na proposta: “Quando entra em vigor? E os filmes em pré-produção, filmagem ou pós-produção? Seus custos dobrariam? Nada disso foi bem pensado.”

Outro produtor britânico destacou o absurdo da situação, lembrando que grandes produções americanas como “Harry Potter”, “Senhor dos Anéis”, “A Lista de Schindler” e “Missão Impossível” foram filmadas no exterior por razões criativas óbvias. “Esses filmes devem ser filmados nos EUA a partir de agora?”, questionou.

Da França, representantes da indústria local enfatizaram que “filmes são serviços sobre os quais não se pode impor tarifas”, enquanto Manuela Cacciamani, CEO dos estúdios italianos da Cinecittà, defendeu intercâmbios culturais recíprocos, lembrando como “as produções americanas se beneficiam de nossos incentivos fiscais e, acima de tudo, desse ecossistema de beleza, locais, clima, cultura” que a Itália oferece.

 

Impacto imediato nos mercados financeiros

A declaração de Trump provocou reações imediatas em Wall Street, já que mais uma pressão tarifária ao mundo (e em qualquer setor, aparentemente) coloca o mundo inteiro em sinal de alerta.

Na abertura do pregão seguinte ao anúncio, as ações de grandes estúdios e plataformas de streaming registraram quedas enormes:

  • Lionsgate (-7%)
  • Netflix (-3,3%)
  • Disney (-2,4%)
  • Warner Bros Discovery (-5,2%)
  • Paramount (-2,2%)

Todos esses estúdios recuperaram parcialmente as suas perdas ao final do pregão nos estados Unidos. Mesmo assim, o sinal de alerta no setor está ligado, e a apreensão quanto às possíveis implementações da medida existe.

 

A proposta de Trump tem respaldo legal?

De acordo com especialistas jurídicos norte-americanos, a proposta de Trump violaria tratados da Organização Mundial do Comércio, que estabelece uma moratória sobre tarifas em transmissões digitais, renovada há 27 anos.

Como os longas-metragens são atualmente distribuídos em formato digital (arquivos DCP), e não em películas físicas, a aplicação da tarifa se tornaria legalmente inviável.

Mas aqui é um Donald Trump com a sua visão de mundo presa em 1946 (ano do seu nascimento), se recusando a entender que o mundo evoluiu em todas as frentes desde então.

O governador da Califórnia, Gavin Newsom, também questionou a autoridade presidencial para implementar tal medida, afirmando que Trump “não tem autoridade para impor tarifas sob a Lei Internacional de Poderes Econômicos de Emergência (IEEPA), já que as tarifas não estão listadas como uma medida contemplada por essa lei.”

 

Possíveis consequências para o futuro do cinema global

Quem pode sair beneficiado com essa proposta de Trump é a Europa e até mesmo o Brasil. A tendência é que os estúdios passem a procurar locações que oferecem isenções fiscais, tal e como o Canadá está fazendo a alguns anos.

O resultado prático é um enfraquecimento da posição dos Estados Unidos no setor, de forma quase inevitável.

As empresas americanas podem ser as grandes perdedoras nesta guerra comercial, já que as vendas de filmes americanos na Europa representam uma alta porcentagem. Os distribuidores europeus poderiam aumentar a sua quota de filmes europeus e a produção e exploração de conteúdos locais.

Hans Fraikin, assessor de mídia global em Dubai, levantou outra preocupação: a possibilidade de que “tudo isso só vai levar os estúdios a fazer um uso muito mais intensivo da inteligência artificial.”

Se viajar para o exterior se tornar economicamente inviável, os estúdios poderiam recorrer a cenários gerados por IA para integrar em volumes virtuais ou composições em tela verde, potencialmente transformando ainda mais as já complexas condições de trabalho da indústria.

E o refeito rebote de tudo isso é altamente previsível: um maior desemprego dentro do setor de produção nos estúdios, sem falar no impacto na economia das cidades ou países que recebiam essas produções.

Não é apenas o fato de uma cidade ou país receber um estúdio para fazer um filme. É um negócio lucrativo para as secretarias e ministérios de turismo dessas localidades. O incentivo ou isenção fiscal se reverte em “propaganda gratuita” para esses países, estimulando o deslocamento de pessoas para essas localidades, o que impulsiona o comércio local.

É um efeito de economia em cadeia, que beneficia a vários setores que não necessariamente estão diretamente relacionados com o cinema.

Considerando os precedentes das declarações de Trump, não seria surpreendente se o presidente recuasse de sua posição inicial, transformando a proposta em ajustes mais modestos nos incentivos fiscais para produções em solo americano.

Por enquanto, a indústria cinematográfica global permanece em estado de alerta, aguardando desenvolvimentos concretos sobre esta controversa proposta tarifária.

E se a proposta de Trump vingar, pode dizer adeus ao The Amazing Race, Survivor e O Mundo Visto de Cima. Esses programas seriam inviáveis com 100% de impostos de produção.

E você não quer viver sem esses programas, não é mesmo?


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