Há um racha entre os estudiosos: uns veem smartphones e redes sociais como vilões inatos, enquanto outros defendem que qualquer tecnologia só se torna disfuncional quando refletida por uma cultura já adoecida.
O argumento central é que a tecnologia é neutra — somos nós que decidimos o que fazer com ela.
Toda essa discussão foi reacendida (porque ela existe há muito tempo) com o conteúdo do livro “A geração ansiosa” de Jonathan Haidt. A obra trouxe um novo fôlego ao discurso alarmista sobre o uso de smartphones, especialmente entre pais e educadores.
Haidt associa diretamente o aumento de doenças psiquiátricas entre adolescentes ao uso irrestrito desses dispositivos e redes sociais, baseando-se em dados preocupantes.
Mas… será que essa é a forma correta de se abordar o tema? Ou mais uma vez estão tentando atribuir a culpa e a responsabilidade dos jovens problemáticos à tecnologia ou um elemento qualquer de cultura pop?
Uma visão simplória da situação
É um absurdo associar o uso do smartphone a transtornos mentais, principalmente quando não se levanta maiores dados para comprovar essa teoria. Outros eventos traumáticos (guerras, assédio, violência física e moral, uma queda no Campeonato Brasileiro…) causam impactos mais diretos na saúde mental de crianças e adolescentes do que o uso constante do smartphone.
Qualquer afirmação sem elementos comprovatórios é uma direta contradição de conceito.
Haidt também critica a formulação de leis com base em medo e moralismo, alertando que essas ações legislativas podem ter consequências mais nocivas do que os problemas que pretendem resolver. A proibição, segundo ela, parte de diagnósticos frágeis e simplificadores da realidade digital.
De fato, legisladores passam bem longe de viverem a realidade dos adolescentes. Na verdade, qualquer adulto ignora o mundo dos mais jovens, tal e como testemunhamos na série Adolescência (Netflix)
A cultura como agente de transformação
É a cultura que molda o comportamento dos adolescentes. Cultura doméstica, de massa, da mídia. E o smartphone é apenas um elemento amplificador.
Mais uma vez, caímos na regra do “o problema não está no smartphone, mas sim em como o indivíduo usa o dispositivo”.
Com os smartphones, todos viramos produtores de conteúdo, o que impõe uma exposição constante. Essa visibilidade extrema se transforma em autocensura, vigilância e um medo paralisante do julgamento público — reforçando um ambiente tóxico de controle social mútuo.
É uma dinâmica similar ao “olho de Sauron”: onipresente e implacável. Todo mundo pode observar a todos em qualquer lugar, e sempre terá um olhar de julgamento a qualquer movimento do outro.
Um erro, uma rejeição amorosa ou um print fora de contexto podem transformar adolescentes em alvos globais de chacota.
A “cultura do cancelamento”, ou linchamento digital
O ideal seria a construção de uma nova cultura, baseado na compaixão e discrição. Estabelecer a ideia de que compartilhar prints de conversas de outras pessoas é algo vulgar.
O único recurso que chega perto disso é estabelecer isso como um crime, e não um desvio moral.
Sem a perspectiva que ataca códigos morais e éticos individuais, não teremos mudanças profundas. A “cultura de cancelamento” e linchamento virtual vai permanecer. E muitos vão seguir culpando as redes sociais, os smartphones e a internet por toda essa verborragia online.
E os pais, que normalizam comportamentos tóxicos, seguem impunes, sem sofrer qualquer tipo de cobrança ou responsabilidade pelo que estão passando de valores para os seus filhos.
A relação entre cultura do medo
Dados do Fórum Econômico Mundial mostram que os adolescentes de hoje estão demorando mais a entrar na vida adulta. Isso acontece justamente pelo receio de se expor socialmente, em um ambiente onde qualquer passo em falso pode gerar humilhação pública — digital ou física.
E os adultos ao redor dos jovens – que são os mesmos que ensinaram esses códigos morais e éticos para os seus filhos – agora entendem que essa é “a geração Nutella, do minimi, do vitimismo”.
Para evitar os riscos sociais da exposição, os jovens evitam situações que antes marcavam a transição para a maturidade, como tirar a carteira de motorista ou sair sozinhos. Isso cria uma geração menos autônoma, perpetuando o medo e a dependência.
A contradição nas próprias ideias de Haidt
Apesar de Haidt defender a proibição como caminho para conter os danos causados pelos smartphones, ele mesmo reconhece que uma cultura baseada na humilhação pública é insustentável.
De fato, é um entendimento incoerente.
Um conceito da terapia cognitivo-comportamental — chamado “leitura de mentes” — é usado para explicar como a cultura atual pressupõe o pior dos outros. É um mecanismo que alimenta o ódio e os cancelamentos, corroendo as relações sociais.
Temos que ter a coragem de olhar para a verdadeira raiz do problema: a intolerância disseminada nas redes.
Por uma nova cultura de empatia
Nossa sociedade como um todo – e não apenas os mais jovens – simplesmente perdeu a capacidade de ouvir o outro. Tudo virou uma batalha de argumentos, onde o que importa é vencer com uma opinião, e não debater ideias e contradições para alcançar um denominador comum.
É de extrema necessidade (urgente) que o ser humano reaprenda a ouvir o outro, interpretar as palavras ditas por alguém (mesmo que sejam opiniões contrárias) e perdoar nos cenários de conflito ou ofensa — online e offline.
Ao invés de proibir o acesso aos smartphones, precisamos desenvolver uma cultura baseada na empatia, que parte do pressuposto de boas intenções para prevenir conflitos e reconstruir vínculos mais saudáveis entre as pessoas.
Caso contrário, o smartphone será apenas mais um na lista dos “culpados” pelos grandes males da sociedade, ao lado dos filmes violentos, das músicas com linguagem adulta, da televisão, dos videogames e da internet.
É possível criar um ambiente digital mais humano e saudável sem recorrer a políticas restritivas. A mudança de cultura, de mentalidade e de valores é a chave para lidar com os efeitos colaterais da tecnologia na vida moderna.
E no final, mais uma vez, a responsabilidade por todas essas mudanças é dos pais.
Porque respeito ao próximo e às diferenças, empatia, solidariedade e moralidade se aprendem em casa.