A transformação digital nas corporações acaba de ganhar um novo capítulo controverso, como se não precisássemos de outras polêmicas relacionadas ao uso da inteligência artificial em nosso cotidiano.
Tobi Lütke, fundador e CEO da Shopify, estabeleceu um precedente radical na gestão de recursos humanos ao comunicar formalmente que suas equipes precisam incorporar ferramentas de inteligência artificial em todas as etapas de trabalho antes de solicitar ampliação de pessoal.
E quando ele diz que “precisa”, quer dizer na verdade que é obrigatório. Mandatório. Como parte do processo de contratação.
Em nome da eficiência na contratação do funcionário.
Tobi (que tem nome de cachorro) está usando a IA da forma correta?
O ultimato digital: adapte-se ou fique para trás
A decisão em forma de comunicado representa mais que uma simples orientação corporativa – é uma virada estratégica que coloca a empresa de comércio eletrônico na vanguarda da integração homem-máquina no ambiente profissional.
Ou diante de um enorme tiro no pé público, usando uma bazuca.
“O uso eficaz da IA agora é uma expectativa fundamental para todos na Shopify”, declarou Lütke em memorando publicado em seu perfil nas redes sociais.
A orientação não se limita a sugestões. Lütke deixou claro que a adoção de ferramentas como Microsoft Copilot, Claude da Anthropic e Cursor não é opcional, mas mandatória.
“Não acredito ser viável optar por não aprender a aplicar inteligência artificial em sua profissão”, afirmou categoricamente o executivo.
A diretriz representa uma mudança paradigmática no modo como a empresa avalia seu capital humano. As avaliações de desempenho agora considerarão explicitamente a proficiência dos colaboradores com ferramentas de IA, transformando o que antes era uma habilidade diferencial em requisito básico para progressão na carreira.
Na verdade, até que dá para entender a linha de pensamento do CEO da Shopify.
Considerando que esta é uma empresa que desenvolve softwares de computadores para lojas online e sistemas de varejo, as habilidades de uso da inteligência artificial estão diretamente relacionadas.
O único ponto aqui é acreditar que a IA pode substituir o fator humano em algumas etapas do processo neste momento.
Por mais que as plataformas de inteligência artificial tenham acelerado no seu desenvolvimento, em áreas específicas como é a da programação, os chatbots ainda estão relativamente débeis.
Talvez aquele bom e velho programador humano ainda seja mais eficiente para DESENVOLVER os códigos, e a inteligência artificial é chamada normalmente para LAPIDAR OU CORRIGIR o que foi desenvolvido pelo cara que fica até altas horas da madrugada desenvolvendo tudo.
Prototipagem acelerada: IA como catalisadora de inovação
Um ponto central na argumentação do CEO é o papel transformador da inteligência artificial nas fases iniciais de desenvolvimento de produto.
Segundo Lütke, a IA pode revolucionar o processo de prototipagem, permitindo que equipes criem demonstrações funcionais em fração do tempo tradicionalmente necessário.
“Os protótipos existem para aprendizado e geração de insights. A IA acelera drasticamente esse processo, permitindo produzir resultados visíveis e testáveis por outros membros da equipe em tempo significativamente reduzido”, explicou o executivo.
Bom… isso é relativo.
Tobi ainda se esquece que é necessário um humano (ou um time de humanos) para desenvolver o conceito do projeto, e por mais que uma inteligência artificial acelere a prototipagem no início de tudo, são necessários aqueles que se envolveram na concepção para supervisionar esse desenvolvimento.
Se uma IA ainda está alucinando na hora de fazer coisas simples como redigir textos ou responder consultas online, que dirá na hora de realizar tarefas um pouco mais complexas em fases iniciais de desenvolvimento de projetos?
Justifique por que a IA não basta
A mudança mais radical, contudo, aparece na política de alocação de recursos. A nova orientação impõe que gerentes demonstrem exaustivamente que determinada tarefa ou objetivo não pode ser alcançado utilizando ferramentas de IA antes de solicitar contratações adicionais ou mais investimentos.
A abordagem reestrutura completamente a dinâmica de expansão de equipes, exigindo otimização máxima da capacidade tecnológica instalada antes de qualquer crescimento no quadro de pessoal.
A estratégia parece aprendizado direto do período de contratações excessivas entre 2020-2022, que resultou em demissões significativas nos anos seguintes.
Sim… foi um exagero contratar um monte de pessoas durante a maior crise sanitária global dos últimos 100 anos. Porém, a verdade é uma só: nenhuma das grandes empresas do setor de tecnologia sabia o que estava fazendo naquele momento, muito menos quanto tempo aquela crise iria durar.
Logo, eu entendo os traumas e até mesmo o desespero em otimizar os lucros. Mas também entendo que tirar o elemento humano para apostar tudo na inteligência artificial em fases de desenvolvimento de determinados projetos é um erro.
E digo isso porque, basicamente, a IA AINDA não está pronta para isso.
Multiplicador de produtividade, não substituto
Apesar do tom rigoroso, a comunicação de Lütke alinha-se com a visão de líderes tecnológicos como Sam Altman da OpenAI, que defende a IA como amplificadora da produtividade humana, não como substituta completa.
“O que precisamos para ter sucesso é a soma de nossas habilidades coletivas e ambição de aplicar nosso ofício, multiplicado pela IA, para benefício de nossos comerciantes”, afirmou Lütke, sugerindo que a empresa enxerga as ferramentas como extensão das capacidades humanas, não como substituição.
Isso é o que ele diz, mas não o que ele está fazendo na prática.
Se ele realmente quer amplificar a produtividade humana, não pode considerar como “mandatório” o uso da IA ANTES de recorrer à ajuda de um profissional. É melhor ter as pessoas especializadas se valendo dos chatbots para otimizar o processo, e não o contrário.
Não que isso não vá acontecer um dia. Estamos caminhando para isso. Porém, não quer dizer que já chegamos neste ponto.
Um prenúncio do futuro corporativo?
A Shopify, que opera integralmente em regime remoto com aproximadamente 8.100 funcionários, aparenta estar preparando terreno para uma transformação profunda em sua cultura organizacional.
Em termo práticos: a Shopify quer enxugar a sua folha de funcionários (principalmente aqueles que não trabalham em modo presencial – apesar do formato da empresa beneficiar o remoto) para se tornar economicamente mais eficiente com a ajuda da IA.
Essa não representa sua primeira iniciativa disruptiva em modelos de trabalho – em 2023, a empresa eliminou 12.000 reuniões dos calendários de seus colaboradores.
E neste aspecto, eu defendo o uso da inteligência artificial. Já está mais do que provado que a grande maioria das reuniões em empresas podem ser resolvidas com um simples e-mail.
O que inicialmente parecia apenas busca por eficiência operacional revela-se agora como parte de uma estratégia mais abrangente para redefinir fundamentalmente a natureza do trabalho na era digital.
À medida que outras corporações intensificam investimentos em IA generativa, a abordagem da Shopify pode representar não uma anomalia, mas um vislumbre do ambiente corporativo que se desenha no horizonte próximo.
E com toda a dinâmica econômica que se estabeleceu recentemente, não podemos duvidar que as mudanças no Shopify podem representar em demissões em massa, para desespero de muitos profissionais competentes.
Ainda sou resistente a aceitar que esta é a melhor estratégia. Algumas empresas que conhecemos estão voltando atrás, pagando a mais para manter os profissionais que estão indo para as rivais com visões mais flexíveis sobre temas como uso da inteligência artificial e trabalho remoto.
Por mais que Tobi Lütke pareça vanguardista na sua iniciativa de uso de IA em sua empresa, o fator mandatório é um tanto quanto retrógrada para um tempo presente que exige maior versatilidade na visão coorporativa.
O tempo vai dizer o quanto vai doer no pé do Tobi essa decisão.